adeus, batucada

romulo fróes | fotos: daryan dornelles



A música brasileira, em especial a de origem popular e distante do eixo Rio–São Paulo, por um longo tempo foi submetida a uma hierarquia criada pelas elites do país que buscavam como símbolo máximo de sofisticação e modernidade os modismos importados da Europa e, a partir da década de 1920, dos Estados Unidos. Prática esta assimilada e reproduzida por uma classe média que sempre se esforçou em maquiar seu status, repudiando gêneros como o samba, o forró e, mais recentemente, o pagode, o funk carioca e o tecnobrega. Mesmo incorporado de forma definitiva à identidade nacional a partir dos anos 30, o samba não foi capaz de retirar totalmente a aura de marginalidade que tanto o acompanhou. Somente a partir da década de 1960, com a segunda geração da bossa nova e o surgimento do tropicalismo, é que, aos poucos, deu-se início a desconstrução deste imaginário. Nesta época, de forma transgressora, Nara Leão era vista cantando composições dos sambistas das favelas cariocas e Caetano Veloso interpretava a trágica “Coração materno” de Vicente Celestino, além de dividir o palco com Odair José  no show Phono 73. Mais adiante, na primeira década do século XXI, surgiu uma nova geração de músicos que, sob os efeitos da pós-modernidade e de sua descrença, se mostrou capaz de abarcar referências tão díspares quanto o poeta e musicólogo Mário de Andrade, a compositora e performer Meredith Monk, o funk carioca e a Banda Calypso. Sendo influenciados por diversos artistas que até bem pouco tempo eram considerados de gosto duvidoso, estes músicos, em sua grande maioria independentes, começaram a produzir um som absolutamente novo, rompendo, sem alarde, as barreiras entre os gêneros e fazendo cair por terra qualquer tipo de possível hierarquia. Assim, vemos a influência da música brega e passional no som de Andreia Dias e Filipe Catto; a regravação de “Você não vale nada” da banda de forró Calcinha Preta por Tiê; a constante presença de pagodes radiofônicos no repertório da dupla Letuce; o diálogo de Kassin, Iara Rennó e Thalma de Freitas com a diva do tecnobrega Gaby Amarantos; e outros tantos exemplos. Sem vergonha de sua origem, a música brasileira produzida por esta geração, digital e globalizada, vem se caracterizando não só por sua diversidade, mas também pela ruptura com a tradicional MPB e por reiterar a máxima punk "Do it yourself".
Presença e voz constante tanto na atual cena musical quanto em seu debate, Romulo Fróes tornou-se um dos principais observadores e críticos de sua geração. Iniciou a sua carreira em 98 com a banda Losango Cáqui, com a qual lançou dois discos. Em 2001, já em vôo solo, lançou um EP, prensado em edição limitada pelo selo Bizarre. Dois anos depois, veio finalmente seu primeiro álbum: "Calado" (Bizarre Records), onde se destacava a forte influência do samba e as parcerias com os artistas plásticos Eduardo Climachauska, o Clima, e Nuno Ramos. Em seu segundo álbum, “Cão” (2006, YB Music) regravou “Mulher sem Alma”, música composta por uma de suas maiores influências: Nelson Cavaquinho. Em 2009, tentando fugir da pecha de “sambista indie”, Romulo lançou o elogiado e complexo “No chão sem o chão” (YB Music), álbum duplo que contou com a presença de Mariana Aydar, Nina Becker, Lanny Gordin, entre outros. No ano seguinte passou a se dedicar exclusivamente à música, deixando de lado seu trabalho de assistente do artista plástico Nuno Ramos. Em 2011 gravou o quarto álbum, “Um labirinto em cada pé”, disponibilizado para download em seu próprio site. Artista irrequieto, Romulo se uniu a Rodrigo Campos e Kiko Dinucci para lançar, em outubro, “Passo Torto”, projeto em que se aprofundou nas experimentações dentro do universo da música popular brasileira e, em especial, do samba.
Rodrigo, por sua vez, lançou seu álbum de estréia “São Mateus não é um lugar assim tão longe” em 2009, baseado em personagens e histórias retiradas de seu cotidiano no bairro da periferia de São Paulo. Lá, o músico viveu dos três aos 24 anos, começando cedo a participar de suas famosas rodas de samba, onde, com o seu cavaquinho, tocava o repertório dos cariocas Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e Fundo de Quintal. Ainda como instrumentista, acompanhou diversos nomes da MPB, como Maria Rita, Vanessa da Mata, Paulo Moura e Fabiana Cozza. Entretanto, mesmo tendo o samba como cerne de seu trabalho, Rodrigo não se deixou levar pelo caminho mais fácil, “São Mateus não é um jugar assim tão longe” se destaca por seus arranjos pouco usuais que levam as canções para outro território, mais climático e repleto de texturas, lembrando, em alguns momentos, uma trilha sonora. Atualmente, além do projeto “Passo Torto”, Rodrigo vem se dedicando à gravação de seu novo álbum: “Bahia Fantástica”, onde, estendendo as suas referências, trouxe para a sua música o soul de Curtis Mayfield e Funkadelic e o misticismo baiano.
Envolvidos em mil e um projetos, Romulo e Rodrigo se uniram para uma apresentação no Rio de Janeiro, no Solar de Botafogo, em outubro passado. O Banda Desenha aproveitou a oportunidade e os entrevistou um pouco antes do show, em seu camarim. Lá, os músicos comentaram sobre seus trabalhos e Romulo, que já foi chamado de  “arauto da neo-MPB”, reiterou suas ideias a respeito de sua geração:

BD – Ao entrevistar os músicos da sua geração, imaginava encontrar um discurso minimamente afinado, mas acabei constantado o oposto. Você tinha esta noção quando começou a escrever sobre esta cena? Que as afinidades eram tão poucas e que muitos iriam contestar o uso de termos como “cena” ou “geração”? Imagino que ser considerado o porta voz de um grupo tão heterogêneo seja complicado...

Romulo Fróes – Alguns acham que não tem cena, outros que não tem geração... Isso irrita muita gente, mas acho uma bobagem. É nítida a existência de uma geração, surgida há dez anos, junto com a internet e as novas tecnologias. Todos, por mais diferentes que sejam, têm estes pontos em comum: Aprenderam a administrar a própria carreira e a gravar seus discos. É um traço muito forte. Isto, de certo modo, me une ao Rodrigo, à Tulipa [Ruiz], à Mallu [Magalhães] e ao Cidadão Instigado. Apesar de fazermos sons totalmente diferentes, a forma como nos relacionamos com a música, o estúdio, os equipamentos e a gravação nos une de alguma maneira. Realmente não temos um pensamento em comum. Não mesmo. Entretanto, concordamos em alguns pontos: fazemos música brasileira e temos respeito por ela, mas sem pagar tributo. Ninguém está buscando a benção da MPB... Essa história de ser porta-voz... Já fui chamado de decano da geração. [Risos]. Ou seja, já estou aí há bastante tempo. O meu primeiro disco, comecei a gravar em 2000. Era um deserto, uma terra devastada. Não existia cena independente brasileira. Quer dizer, ainda não existia meios para que os nossos trabalhos se propagassem. E como tenho muita facilidade em articular e alguma para escrever, me pus neste papel, muito por conta de querer registrar um momento que considero importante. Mas não porque alguém tenha pedido. Realmente nunca tive a pretensão de ser porta-voz de nada. Só fui fazer a minha parte. Queria encontrar os meus pares e falar sobre eles. Tinha o Lucas Santanna, o Cidadão Instigado... Era uma cena muito pequena.O Moreno [Veloso] havia acabado de lançar o primeiro disco do +2, o "Máquina de Escrever Música". Foi um marco na nova música brasileira, um álbum importantíssimo, e ninguém comentava! E, obviamente, com o passar do tempo e o surgimento de um milhão de bandas, jornalistas e críticos começaram a se interessar por esta música nova... Gerou-se um acontecimento. Então, quando este cenário foi se fortalecendo, a minha voz já não passou a ser tão importante porque todo mundo já estava falando sobre estes artistas que eu falava e que ninguém nunca tinha ouvido. Continuo a escrever, por gosto, muito mais por gosto e muito mais de quem eu gosto do que por necessidade. Mas, obviamente, nunca me pus neste papel. Não sou o porta-voz de nenhuma cena, mas sou muito afim de falar sobre ela, de escrever sobre ela e, toda vez que sou convocado, eu falo. Agora, ninguém me autorizou a falar por ninguém. Mas, se existe alguma pessoa que conhece e que entende o que é este momento da música brasileira, sou eu. Porque o estou vivendo. Sei das angústias porque passam os artistas da minha geração. Então, por que não escrever?

BD – O problema, imagino eu, é que a sua predisposição em falar da cena acaba fazendo com que os jornalistas o foquem e peçam sua opinião paulatinamente sobre os mais diversos assuntos, o que acaba tornando-o um pouco, sem querer ser pejorativo, o “Caetano Veloso” da nova MPB...

Romulo Fróes – Porque o Caetano tinha oque falar. Acho que é um pouco isso, as pessoas vão percebendo quem fala e quem não fala. Eu sou falastrão mesmo. Gosto de falar, quero falar, quero pensar. Aprendo muito falando. Agora, tenho que tomar um grande cuidado para que a minha música seja maior do que a minha fala. Porque se o que digo é maior do que a minha música, tem algo de errado. Quero crer que não seja assim. Porque acredito muito no meu trabalho. Se tem alguma coisa em que creio mesmo é na minha música e nos meus discos. Sempre digo que algum dia vou ser salvo por eles. Por isso vivo gravando, porque ali está tudo que acredito, está tudo o que fiz até hoje. Agora, não vou me furtar de falar. Não vou furtar de discutir. Gosto de discutir. Acredito que pensar a obra é tão ou mais importante que fazê-la. É isto o que faço e é o que sempre fiz. Tenho apreço pela discussão, mas definitivamente não sou porta-voz de nada. E se alguém ficar chateado com isto é porque não entendeu. Já rolou algumas pouquíssimas histórias de ciúmes, pois acharam que estava tomando a frente de algo. Peço desculpas, mas entenderam errado. Pelo contrário, não estou pedindo este papel para mim, só estou falando para todo mundo uma coisa que  repito em toda as entrevistas: Nós estamos vivendo um dos momentos mais brilhantes da música brasileira. Tenho certeza disto. 

BD – Entretanto, nestes últimos meses surgiram as primeiras vozes dissonantes. Você esperava tantas críticas? Ainda mais em tons tão fortes quanto os vistos no Facebook [Ed Motta fez críticas severas e, no mínimo, deselegantes a Romulo Fróes, Tulipa Ruiz ea banda Hurtmold] e nos jornais [em sua coluna na Folha de São Paulo, Álvaro Pereira Júnior desqualificou totalmente os trabalhos desta geração e, principalmente, os de Thiago Pethit, Criolo e Romulo Fróes]? De alguma forma, parece que a cena independente se tornou mainstream

Romulo Fróes – Mas isso pra mim é sinal de sucesso! Fiquei feliz com aquela matéria. Achei legal ser identificado como um dos três: Eu, Criolo e Thiago [Pethit]. Porque aquilo nem trisca em mim, cara! Dizer que faço bossa velha?! Isto significa o que? Destrinche. Fale, me ensine! Diga algo sobre o meu trabalho: “Olha, Romulo, acho que está pecando nisso. Talvez você esteja muito atrelado a certa tradição”... Porque é isto o que está soterrado na expressão bossa velha. Nitidamente ele nunca ouviu os meus discos. Do ponto de vista artístico, da crítica, isto não serviu para absolutamente nada! Agora, fico feliz que tenhamos chegado lá. Porque o sucesso não é só pelo tanto de carinho que você recebe, é pelo tanto de porrada também. Se alguém achou que você merece uma porradinha, é porque você o incomodou de alguma maneira. Venho de um meio muito pesado,de discussão e de crítica, que é o das artes plásticas. Ali, música é brincadeira de criança. Adoraria que a crítica musical tivesse um espaço maior nos jornais. Ia ser muito rico. Acho que aprenderíamos muitas coisas. Agora, o cara dizer que somos mimados e que faço bossa velha?! Isto não quer dizer nada. Você disse que as primeiras vozes dissonantes estão aparecendo... É porque as vozes consonantes estão aumentando cada vez mais. Este ano é muito emblemático. A quantidade de discos que estão sendo lançados! E discos bons! Aí os caras, os ressentidos de plantão que ficaram para trás na história, começam a dar as caras. Vai aparecer mais um monte ainda. Têm muitos ainda escondidos. E eu acho o máximo! 


BD – Você acha que a sua formação em Artes Plásticas acabou dando esta visão mais conceitual e de movimento ao ver a cena e a música? Imagino que isto lhe dê um grande diferencial na hora da criação...

Romulo Fróes – Trabalhei 16 anos como assistente do Nuno Ramos. A forma como faço música é totalmente diferente do Rodrigo, por exemplo. Até por questões técnicas. Sou incompetente musicalmente. O meu barato vem de outros assuntos, de outros meios. Preciso do Rodrigo, do Guilherme Held, do Thiago França, do Pedro Ito e do Marcelo Cabral para dar forma às minhas ideias. Sempre me cerquei de músicos inacreditáveis porque precisava de gente capaz de traduzir a minha cabeça de artista plástico, muito mais ligada em outras questões. Ainda que eles não tenham a minha formação, o modo como se relacionam com música é semelhante. Acho também que, de certa maneira e sem falsa modéstia, provoquei um curto circuito nas pessoas que toquei. Devo ter mudado um pouco o jeito do Guilherme tocar ou a forma do Rodrigo pensar um disco. Esta troca existe. Quando achei estas pessoas, que têm uma sensibilidade parecida com a minha, as coisas se acertaram. Passei muito tempo sendo o artista plástico que queria fazer música. Por exemplo, tive muitas dificuldades nos meus dois primeiros discos, porque tocava com uns caras de choro e eles não estavam afim das minhas maluquices. Eles faziam, mas se sentiam incomodados. Quando conheci os caras da minha geração que não eram só ligados à música, mas também ao cinema, à literatura e a outras coisas mais, senti que finalmente havia encontrado a minha turma. Acho que nós temos muito disto: A Tulipa é desenhista, a Karina Buhr é atriz e também desenha... Todo mundo está ligado em muitas coisas. Tem gente que faz filme, tem gente que escreve... Há este lado plural. Até por questões de necessidade. Eu, por exemplo, continuei trabalhando nas artes plásticas porque não conseguia viver de música. Ainda é muito difícil se manter com uma obra autoral. Eu acabo fazendo locução, curadoria... Mas voltando à sua pergunta, acho que as artes plásticas têm muito a ver com a minha música. Principalmente por conta das letras do Nuno e do Clima, que são artistas plásticos. É a parte mais original do meu trabalho. Claro que há um diálogo e uma provocação entra a minha música e as suas letras, mas o fato de não serem compositores e sim escritores, artistas plásticos e cineastas, faz com que elas sejam muito diferentes e originais.
  
BD – Você poderia falar da sua ligação com os músicos cariocas? Principalmente a Nina Becker?

Romulo Fróes – Cara, eu tinha uma agonia que era a seguinte: Não gostava de ninguém de São Paulo! Só gostava dos caras do Rio. [Risos].  Tinha certa aflição. Achava os trabalhos interessantes, mas não via um ponto de interseção com o que queria fazer. Em compensação, Adorava o +2, o Los Hermanos... Adorava o Acabou La Tequila, adorava a Orquestra Imperial, o Rubinho Jacobina... Eu me sentia completamente identificado com a cena daqui. Chegava a falar: “Se eu morasse no Rio de Janeiro seria da Orquestra Imperial”! Ou então: “Eu quero o +2! Aquele disco é meu”! Aquilo não é carioca pra mim. Tá bom, tem algo de carioca. [Risos]. Mas adoraria ter feito aquele álbum ["Máquina de Escrever Música"]. Acho que me aproximei deles, assim como me aproximo de todo mundo, não porque são do Rio ou de São Paulo, mas porque são músicos com quem me identifico. Fui atrás mesmo. Tenho certo desprendimento nisso... E a Nina, cara! Posso dizer sem sombra de dúvidas: Foi a pessoa que melhor gravou uma música minha até hoje. A gravação de “Flor Vermelha”... Ela transformou em outra coisa! A canção era um samba muito mais quadrado. Tenho muita admiração por ela e entendo perfeitamente suas questões e o caminho que está percorrendo. E aí combinou de eu pertencer a uma gravadora, a YB, que é por onde muitas dessas pessoas passam, inclusive ela. A encontrei lá. Foi um movimento natural. Já estou ouvindo o seu disco novo. É lindo! Tenho muita honra que ela faça parte do meu trabalho.


BD – É incrível como vocês dois combinam. Já ouvi diversos comentários que seria incrível se a Nina gravasse um álbum só com as suas composições.

Romulo Fróes – [Risos]. [Acanhado]. Ia ser a glória! O disco dela, se nada mudar, vai ter uma parceria nossa e uma outra linda do Nuno com ela. Mas resta saber, porque até sair muita coisa acontece. Mas estou muito feliz por estar lá de novo, de alguma maneira. 

BD – E o “Passo torto”? Como surgiu essa idéia?

Romulo Fróes – O momento inicial? O Big Bang, cara? 

Rodrigo Campos – Eu e o Romulo já estávamos compondo...

Romulo Fróes – E você também estava compondo com o Kiko.

Rodrigo Campos – E aí o Romulo mandou um e-mail chamando nós três para compormos juntos. 

Romulo Fróes – Nossa, cara... Eu não sei, Rodrigo...

Rodrigo Campos – Bem, eu aproximei vocês dois...

Romulo Fróes – Exatamente! Você foi a ponte entre eu e o Kiko. Vocês me chamaram para fazer o “Pelas Tabelas”, né? Que era com você e ele. Se bem que ali já tinha rolado uma parceria minha e do Kiko, mas você foi o responsável. Só não sei quem teve a ideia de fazermos algo juntos.

Rodrigo Campos – Foi meio natural. Mas acho que foi você. Foi o Romulo que descolou a YB para a gente gravar o disco.

Romulo Fróes – Mas a ideia do “Passo Torto” é anterior! A gente começou fazendo shows. Acho que teve um show...

BD – (Risos). Mas vocês não sabem como começou o projeto?! [Risos].

Romulo Fróes – É que a gente começou do jeito certo, que é assim, ó: “Vai indo, vai indo”... [Risos]. A parada começou assim: Fui a um show do Rodrigo Campos. Disseram que o cara era foda, que “São Mateus” [“São Mateus Não é um lugar assim tão longe”] era foda. Aí fiquei com ciúmes e fui ver se era isso tudo mesmo. Porque foi bem no ano de lançamento do meu disco. Aí vi que era mais do estavam falando. E aí fui atrás dele e ficamos muito próximos. O Rodrigo já era conhecido do Kiko por conta do “Ó do Borogodó”, que é uma casa de samba tradicional de São Paulo. Obviamente eu sabia quem era Kiko Dinucci. Ele é muito famoso lá em São Paulo e as noites que fazia no “Ó” eram muito concorridas. E aí, naturalmente, um dia o Kiko virou para mim e disse: ”Fiz uma coisa que parece com você”. E quando a gente viu, havia se formado um núcleo. Arrumamos então um show na Casa de Francisca. Um pouco para destrinchar o nosso DNA, porque nós três fazemos experimentações com o samba, de uma forma não tradicional. Claro que há uma proximidade em nossos trabalhos, mas também temos muitas diferenças. E aí fizemos este show para ver se dava a liga. 

Rodrigo Campos – Mas tínhamos poucas músicas, se lembra? Eu fazia um pedacinho, chamava o Romulo e depois o Kiko. No final juntavam os três. Cada um com três ou quatro músicas. Aos poucos a gente foi compondo, até que o show estava inteiro só com parcerias nossas. 

Romulo Fróes – Os shows foram se sucedendo e decidimos então que o disco só teria composições nossas. E aí, como tenho este canal na YB...Costumam dizer, de brincadeira, que tenho um subselo na gravadora, porque sou muito amigo do Maurício [Tagliari, proprietário da YB Music] e ele confia muito em mim. Toda hora indico algum artista para ele ouvir e ver se quer lançar. Falei então do projeto com o Maurício e ele topou. A sua presença  foi muito importante para nós, até por ter sugerido a entrada de um baixista, o Marcelo Cabral, que já era da turma. Aí o “Passo Torto” se formou mesmo:O violão do Kiko, o cavaquinho do Rodrigo, a minha voz e o baixo do Marcelo dando a liga. 

rodrigo campos
BD – Ouvi muito que o “Passo Torto” seria baseado no samba paulista.

Rodrigo Campos – O que acontece é que eu, o Romulo e o Kiko temos uma relação muito estreita com o samba. Cresci em São Mateus, ouvindo samba e aprendendo a tocar. O Kiko se apresentou por quatro anos no “Ó do Borogodó”, que é um bar de samba. O Romulo, por sua vez, é apaixonado por Nelson Cavaquinho... O samba está na gente, mas não de um jeito tradicional, está diluído, como referência. Só que acabaram reforçando esta imagem de sambista em nossas carreiras. 

Romulo Fróes - Eu fiz um disco duplo pra me livrar disso! [Risos]. Diziam que eu era sambista indie! Acho que o “Bahia Fantástica” vai te livrar um pouco disso. Se é que você quer se ver livre. Porque é curioso! A gente não tem problema algum com o samba. A gente adora. Mesmo. O Kiko é bacharelado em samba paulista! Ele sabe as origens, sabe tudo! Mas tinha uma banda punk! 

Rodrigo Campos – A nossa relação com o samba não é uma relação apaixonada de um sambista tradicional que defende o samba e as suas raízes a todo custo.

Rômulo Fróes – Apaixonada no sentido mais profundo, não é? 

Rodrigo Campos – Apaixonado no sentido de que você pode também deixá-lo de lado e tomar outro rumo. Uma paixão mais dinâmica, sabe?  Não precisamosnos ajoelhar aos pés do samba e declarar a nossa paixão. Esta relação é a que eu procuro ter, sem essa reverência toda. E não só com o samba, mas com toda a música brasileira. É um traço da nossa geração, de usar a referência da música popular, mas sem a reverência que faz com que você não consiga compor nem criar. Vejo que as gerações anteriores à nossa têm claros problemas por terem vindo após Chico Buarque e Caetano Veloso. E acho que a nossa sacada é não termos este medo. Não quer dizer que sejamos do tamanho dos caras. Eu os acho infinitos, mas não tenho problemas em compor e dizer que o que faço é outra coisa, sem a obrigatoriedade de seguir os seus passos. Cortamos um vínculo, o que fez com que tivéssemos certa independência para produzir o que bem quiséssemos e sem ficar simplesmente seguindo a tradição de canção brasileira. 

Romulo Fróes – E a gente cortou o elo sem cortar a admiração. Sem ter de negar. Como é que eu vou negar Tom Jobim? Como é que eu vou negar o Caetano Veloso? Só se eu for uma anta! Agora, eu estou na minha, estou produzindo, todos eles são referências para mim, mas sem esta sombra. 

BD – Rodrigo, mesmo você sendo paulista, li que possui uma relação muito estreita com o samba carioca. Por quê? 

Rodrigo Campos – Em matéria de samba, São Mateus é como se fosse um bairro carioca em São Paulo. O Quinteto em Branco e Preto é de lá e acompanha muitos artistas importantes. Também tem o samba do Bar do Timaia... Beth Carvalho ia muito. Existe uma tradição de samba no bairro, uma tradição ligada a Cartola, Candeia e não a [Paulo] Vanzolini ou a Adoniran [Barbosa]. Cresci lá e desde garotinho ouvia muito samba carioca nas rodas. Tocava Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho... Agora, quanto ao samba paulista, começou quando passei a compor sobre São Paulo, sobre São Mateus. Aí virou samba paulista, mas com referências cariocas na estrutura. Mas ainda assim, me distanciei delas ao inserir outros elementos externos à canção. Chamei várias pessoas para produzir meu primeiro disco: Beto Villares, Gui Amabis, Antonio Pinto, Benjamin Taubkin, Missionário José, Gustavo Lenza... Para tentar quebrar com essa referência e tornar a minha música mais paulista. O samba está no disco, está nas minhas composições, mas sempre compus outras coisas. Tenho uma canção chamada “Cavaquinho” que fala de samba, mas que é uma valsinha. Então, não estou limitado apenas a este gênero. Já ouvi tudo de música brasileira. Acredito que, de alguma maneira, o meu samba já estava impregnado de algo externo a ele. Então trazer caras que compõem para cinema, como Beto Villares e Antônio Pinto, foi mais um movimento de agregar outras informações ao meu som. É engraçado como as pessoas me vêem, porque não me vejo desta maneira, como um sambista. É que toco cavaquinho, acompanhei várias cantoras como cavaquinista. Você me vê como um músico, mas a música para mim é muito mais uma experiência empírica do que qualquer outra coisa. Algo que trago da infância, de ficar batucando. Claro que fui estudar e me profissionalizei, mas este movimento veio das minhas brincadeiras de criança. Ele transcende a questão musical. É uma experiência, de viver.

BD – "São Mateus não é um lugar assim tão longe"é bem climático. Em alguns momentos chegou a me lembra o Clube da Esquina. Houve esta intenção?

Rodrigo Campos - De jeito nenhum. Se há semelhanças, aconteceram de maneira espontânea. Talvez algum dos produtores do disco tenha mais explicitamente essa influência, Benjamin Taubkin, por exemplo, que produziu a faixa "Para onde vão os meninos de São Mateus?". Nunca ouvi muito Milton, e não por não gostar, mas por achar muito profundo, a ponto de me incomodar. Gera em mim uma espécie de nostalgia de algo que nem vivi ou conheço. É meio perturbador. [Risos].

BD – A Luisa Maita, além de ser sua esposa, parece ter uma importância muito grande em seu trabalho. Como se dá este entrosamento? 

Rodrigo Campos – Eu e Luisa começamos juntos e acho que a maior contribuição que nos demos foi acreditar um no outro sempre. Do ponto de vista musical nos identificamos bastante, sem dúvida, a ponto desta parceria se destacar em alguns momentos, mas acho que temos trabalhos independentes, e a relação amorosa só funciona por causa dessa independência.

BD – E o novo álbum, “Bahia Fantástica”? Cheguei a ver um vídeo da gravação com a participação da Luiza e li que o álbum teria uma sonoridade negra, mas com várias vertentes. 

Rodrigo Campos – Este álbum tem vários elementos que se unem em uma tentativa de falar sobre a incompreensão. Porque ele fala de uma Bahia que é fantástica, que não é a geográfica. E esta Bahia Fantástica em alguns momentos entra como metáfora para certas questões incompreensíveis para mim. Por exemplo, a morte. As canções tateiam a morte o tempo todo, de maneira metafórica. E esta relação vem muito do lado místico da Bahia, de uma religiosidade profunda. Eu enxergo isto, pelo menos. O álbum veio um pouco deste confronto que nunca havia tido, de pensar que um dia irei morrer. Acho que não tive esta crise na adolescência e acabei tendo agora. [Risos]. Falando assim parece um pouco pretensioso, mas é bem simples. É basicamente a experiência de um cara que se confrontou com esta questão e quis fazer música. E o estopim de usar a Bahia como metáfora surgiu quando estive por lá e fiquei hospedado em um hotel que já foi a casa do Vinícius de Moraes. Fiquei hospedado por dez dias em seu quarto, do jeito que era, em Itapoã. Quando comecei a compor as músicas sobre a Bahia, fui tentar entender o que realmente queria dizer com aquilo. Porque a Bahia simboliza tanta coisa pra mim e para a música brasileira...Tem a questão do sincretismo religioso, da miscigenação... A música pode ser festiva, mas também possui uma forte ligação com o candomblé, com o sagrado e o profano. E aí decidi buscar no soul mais algumas referências. Vejo nele um pouco destas questões, da experiência religiosa. De uma maneira, bem sutil, quis trazê-lo para o meu som.  Mas isso foi somente no primeiro momento, porque durante a gravação outros conceitos foram surgindo.

Romulo Fróes – O Rodrigo fez uma coisa bacana neste disco que é juntar uma galera com muitas idéias diferentes e opiniões próprias sobre música. Então, acontecia uma coisa legal nos ensaios: Algumas canções levavam para o afrobeat... Elas queriam ser afrobeat.  E, ao invés de nos entregarmos a isso, fugíamos dele. Ou então: “Essa música está querendo ser um axé! Ah, beleza, então vamos tocar axé! Pronto”! É muito rico este movimento de estica e puxa. O disco fala sobre a morte, mas você não para de dançar. Ele nunca vai em direção ao óbvio. E ainda tem a história de ser um álbum onde um sujeito da periferia de São Paulo resolve falar sobre a Bahia! É uma confusão tão grande que vai dar certo. Já deu certo. E este disco, esta liberdade artística, diz muito sobre ele e sobre nós. 

BD – Existe um pensamento entre os músicos da sua geração que é bem interessante: a planificação das referências e dos gêneros. Muitos artistas se apropriam de músicas ditas populares com um respeito inimaginável, diferente de outros de tempos atrás que se comportavam como se estivessem resgatando aquela música considerada de baixa qualidade e a colocando no nicho da alta cultura...

Romulo Fróes – Que é o comportamento do Caetano Veloso. Não funciona mais. Nem com ele! Quando cantou “Um tapinha não dói”, já não teve esta repercussão toda. Em algum momento Caetano teve que falar: “Eu acho Vicente Celestino foda”! E aí gravou “Coração materno”! Aquilo tem um conteúdo político. Quando gravou Odair José foi uma afronta! Hoje não tem mais isso. Kassin compõe guitarrada e elogia o Chimbinha, a Iara  [Rennó] e a Thalma [de Freitas] gostam da Gaby Amarantos mesmo! Elas compuseram uma música para ela. Não era para causar! Nada causa mais. O Brasil é muito plural.

BD – Não há mais fronteiras tão distintas entre uma suposta música sofisticada e a mais popular.

Romulo Fróes – E quem tem este sentimento, quem ainda diz: “Eu faço uma música sofisticada”, está fazendo uma merda de música. Tenho certeza disto. As pessoas que pronunciam esta frase hoje são pessoas caretas, preconceituosas, atrasadas. São os herdeiros de Tom Jobim, que é o maior gênio que passou por esta terra. Mas os filhotes dele são foda! Eles acham que estão levando o seu legado. Mas se eles soubessem, fariam totalmente ao contrário. Tom Jobim é o oposto disto, do: “Eu faço uma música sofisticada”. Ela falava que fazia sambinha! “Insensatez” era um sambinha para ele! E é a música mais sofisticada que já passou pela face da Terra. Agora, por outro lado, não é que esta geração goste de tudo. Eu não gosto de tecnobrega, por exemplo. Mas entendo quem goste. Acabou o tabu, acabou a adoração, acabou tudo. A gente se fudeu, né, cara? A minha geração teve que aprender a produzir, a gravar disco... Tivemos que inventar um novo mercado... Você acha que temos tempo para ficar nesta dúvida? Se devemos adorar ou negar?  A gente vai negar quem?! A gente vai negar a MPB, cara?! Mas, pode ter certeza, no meio disto tudo estamos fazendo uma música muito forte, que não deve em nada à música brasileira. Nem melhor, nem pior. Uma música brasileira boa, sofisticada. [Gargalhadas].

comentários - adeus, batucada

  1. Rômulo é um cara incrível. Acho que os amantes dessa novaMPB são menos elitistas e "sofisticados" que os que se fecham na tradição bossanovista. Acredito também, como vi num artigo deste blog, que essa onda de artistas independentes vêm trazendo algo parecido com o movimento tropicalista, temos muitas coisas fantásticas, muitas mesmo. Não estou dizendo que a tradição é descartável, só devemos abrirmo-nos para o novo, pois as vezes, por termos características estereotipadas e elitistas dum gênero musical acabamos perdendo muito. Ótima entrevista.

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